O velho imperador e a Proclamação da República
by marcia
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Manhã
de 15 de novembro, Petrópolis: a serra se despia da neblina. Tudo era
frescor, calma e tranquilidade. A temporada de verão, com seus bailes de
caridade e leilões de prendas beneficentes no Palácio de Cristal, não
começara ainda. As hortênsias cresciam no parque do palácio sob os olhos
do homem que um diplomata descreveu como: “alto, um tanto grosso, de
barba longa e basta, já branca, passos lentos, finas maneiras...
trajava habitualmente, desde as primeiras horas da manhã, casaca preta.
Na lapela, brilhava o “Tosão de Ouro”, condecoração excepcional
ligada às Cruzadas contra os mouros, e da qual dizia-se ter pertencido
ao imperador Carlos V. Bem cedo, ele deixara as salas mobiliadas
modestamente, com paredes caiadas e móveis de assento de palhinha. Saia
para suas duchas matinais, no estabelecimento fundado por um francês na
rua Nassau. Era o remédio ideal para a artrite que o dobrava de dor. Mas
não só. Banhos eram sinônimos de limpeza exemplar. Limpeza com a
finalidade, segundo os médicos, de reforçar os recursos orgânicos.
Limpeza legitimada pela ciência: era preciso se lavar para melhor se
defender. O resultado não só o deixava mais limpo, mas, era moralmente
eficaz. A ducha afastava micróbios não vistos a olho nu. Ao acelerar a
oxigenação, ela favorecia a destruição dos males. Ao facilitar a
combustão, agilizava as imunidades, caçando, como um perdigueiro, as
bactérias nocivas. Necessário tonificar o organismo, trabalhar os
músculos, acelerar a circulação do sangue, ativando energias. Afinal a
pele respirava participando da defesa química do corpo. A água lavava e
levava também os maus pensamentos. Assim como as máquinas exigiam a
limpeza freqüente de suas engrenagens e a eliminação das escórias,
também o corpo humano, uma máquina tão delicada, carecia da expulsão
regular de dejetos. A sujeira entre outros.
Os banhos: a água escorrendo sobre a pele, o sabão de Houbigant
misturando seu odor ao dos cremes e talcos: uma sensação. Gestos
simples e íntimos repetidos no cenário anônimo, copiado das duchas
populares em uso em Paris. O chão liso de cimento e zinco, o jato de
água dirigido sobre o corpo. Nada de banheiras ou alongamento dentro da
água. Era uma ducha sanitária como tantas que se multiplicaram na
França, durante o mesmo século. Nus, os homens passavam em fila. Era o
chamado banho de chuva, absolutamente funcional. Lá ou cá na serra, se
homenageava a Louis Pasteur, sob os jatos e chicotes d´água, assim como à
sua teoria germinal das doenças infecciosas. Pasteur, seu amigo a quem
visitara em Paris e que mantinha um busto dele, o imperador, no
escritório.
Limpo
e fortalecido ele deixava os banhos. No caminho feito a pé, o velho
senhor cumprimentava os passantes com um gesto cortes. As crianças o
rodeavam. Ganhavam moedinhas com a sua efígie. No dia anterior estivera
na Corte, para assistir ao concurso da cadeira de inglês no Colégio
Pedro II. Assistir concursos era um dos seus hábitos. Será que
dormitara, mais uma vez? Sentia tanta e tão incômoda sonolência. “Andar assim caindo de sono e dormindo em pé cansa o cérebro e V. deve cuidar mais na sua saúde”,
dizia-lhe sua amada amiga, a condessa de Barral. Cansado ou não, não
vira qualquer sinal de tumulto. À noite se debruçara sobre estudos da
língua tupi, que julgava, – segundo escreveu a Teresa da Baviera, sua
prima – ter relações com as línguas asiáticas. Tudo calmo. Por isto
mesmo, ignorou o telegrama que lhe foi entregue por seu criado
particular, ao se levantar. Nele, Ouro Preto o tranqüilizava. Sim, algo
estava acontecendo de anormal, mas, o presidente do conselho de
ministros ia tomar providências para conter os insubordinados e fazer
respeitar a lei.
D.
Pedro II refletiu: não seria a insubordinação de uns poucos que o faria
descer a serra. Mas intuição ou não, na saída da Casa de Banhos, o
Imperador andou até a estação onde perguntou se poderia obter um trem em
caráter emergencial. “- Sim, Vossa Majestade”, respondeu-lhe o
funcionário. Ás onze horas, chega-lhe outro telegrama. O segundo. Ouro
Preto lhe participava a destituição do ministério pela tropa revoltada.
Alarme. “ –Vim ao Rio para que se resolvesse o que fosse aconselhado” – diria D. Pedro, mais tarde. Tomou, então, o trem com a imperatriz, serra abaixo.
Já
dentro do vagão, da ampla janela de vidro, o imperador descortinava os
tons cor de rosa do fundo da baía de Guanabara. A Coroa do Frade e o
Escalavrado, longa aresta livre de vegetação tal como o dorso de um
animal pré-histórico, deslizava para trás na paisagem. O resfolegar da
locomotiva Baldwin embalava seus pensamentos pelos 15,9 quilômetros de
estrada, construída pelo barão de Mauá, que o levaria rapidamente até a
Guia de Pacobaíba e de lá, em ferry, até a Corte. Ao ritmo da moderna estrada de ferro, tentava ordenar os pensamentos. “Nós
dormimos sobre um vulcão...os senhores não percebem que a terra treme
mais uma vez? Sopra o vento das revoluções, a tempestade está no
horizonte”. De quem eram estas palavras? Ah, sim... De léxis de
Tocqueville, anunciando as revoluções republicanas na Europa. Mas elas
teriam, finalmente, atravessado para estes lados do Atlântico? A
melancolia descia sobre o seu semblante, enquanto a neblina subia dos
grotões verdes, sugada a esta hora do dia, em direção ao céu. Com a
larga testa encostada no vidro ia pensando: “Pedro Banana”, “Pedro Bobeche”, “Pedro Caju”, “o César caricato”. “Aquele que era senhor de um império e que hoje não é nem senhor de si”,
acusou alguém num discurso na Câmara. A imprensa andava impossível. As
caricaturas eram implacáveis. Circulavam na Corte cerca de meia dúzia de
jornais satíricos, semanais, que vendiam até 10.000 exemplares.
Revistas, então? Mais de vinte. A Ilustrada vivia até de
assinaturas! As sátiras eram um ultraje que suas idéias liberais tinham
que suportar. Não se reconhecia nas imagens do velho dorminhoco, do
barbudo a olhar as nuvens por uma luneta, distante da realidade. Mesmo
seu interesse pelas línguas mortas, a arqueologia, a astronomia, a
literatura comparada, ciências que o colocavam entre os grandes do Velho
Continente eram motivo de riso junto com suas pernas finas e voz
estridente. Bem que a Barral o prevenira. “Quanto aos escandalosos
folhetins, isso deveria levar a chicote e se um dia não se punir
severamente libelistas, não sei onde irá parar a realeza”? Houve
ainda um mau presságio, um aviso: ao abrir este ano o parlamento, ao se
sentar no trono o cetro lhe caiu das mãos. Ele ouviu alguém dizer, “Foi a primeira vez que isto aconteceu”. Mas ouviu também a resposta: “Será também a última que lhe acontecerá”.
E
para aonde iria a realeza? Teria ele errado? Fizera mal em voltar à
Europa pela terceira vez, deixando Isabel como Regente? E o detestado
genro, o “corticeiro”, “o agiota sem berço”, dono de casas
de pensão, segundo acusavam os boatos? Ora bolas, ele, o Imperador do
Brasil, estava anêmico. Queria tratar-se com Charcot. E por falar no
sábio francês, o quê fazer com o neto Pedro Augusto? Ele o preocupava
tanto. Daria ele um sucessor à altura? E as vezes que o encorajara a se
tornar Pedro III, o que fazer com tais promessas? Mas, e os sintomas que
presenciara, seriam sinais da terrível maldição dos Bragança?
Ao
se dirigir para a estação, arrancada do cotidiano modorrento da cidade
serrana, sua esposa Teresa Cristina repetia, entre desconsolada e
patética, que estava tudo perdido. Por isto mesmo, trouxera suas jóias
consigo. Lembrava-se, com certeza, do triste fim dos Bourbon-Sicília e
de seu irmão, Ferdinando II, de alcunha, “o Bomba”, - bomba por
tudo o que destruiu na cidade de Messina quando Garibaldi a invadiu,
atrelando o pequeno reino à recém nascida Itália. O som das
metralhadoras, as camisas vermelhas, a longa guerrilha, os fogos acesos
pelos rebeldes nas colinas, enfim, todas as lembranças e informações
vindas por cartas e jornais estrangeiros alimentavam seu medo. O marido
tentou acalmá-la: “ –Qual, senhora, chegando lá isso acaba”.
E o que era “isso”
que tinha que acabar? Os dois últimos decênios tinham fervido de
acontecimentos. Por um movimento subterrâneo que vinha de longe, a
instabilidade de todas as coisas se mostrou. A guerra do Paraguai
multiplicara os imensos defeitos da organização militar. E tornara
visível que os progressos sociais não se tinham consolidado. Graças a
Deus, a repugnante chaga da escravidão começava, lentamente, mas muito
lentamente, a se apagar. E onde andaria o velho Deodoro? Haveria de ter
uma explicação para tudo, não?
- Trecho de "O Príncipe Maldito", de Mary del Priore. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2007.
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