domingo, 25 de outubro de 2015


As leis suntuárias e a roupa da morte

by marcia
A roupa, na sua forma, cor e substância significou, durante o Antigo Regime, ou seja, entre os século XVI e XVIII, uma condição, uma qualidade, um estado. Não havia dúvidas quanto a isso. Instrumento de regulação política, social e econômica as “leis suntuárias” existiam para manter visíveis os níveis sociais de quem se vestia. O luxo de tecidos e bordados era apanágio da aristocracia. Seus membros não podiam ser confundidos com os das camadas emergentes. Codificando cortes, materiais, tinturas, ela garantia marcas de poder, intensificando-lhes o brilho. Semelhante ao que ocorre, hoje, com o uso de roupas de griffe? Não. Muito mais rígido.
A roupa, entre os séculos XV e XVIII tinha um papel político-social. Ela funcionava como signo de hierarquização, de fixidez ou de mobilidade dos grupos. Um exemplo? Em Portugal, judeus, tinham que usar uma carapuça amarela e mouros, uma lua de pano vermelho de quatro dedos, “cosida no ombro, na capa e no pelote” segundo o código português de leis conhecido como Ordenações Filipinas, promulgado em 1603 e que vigorou ativamente no Brasil até 1830. Outro exemplo para que possamos perceber a que ponto tal legislação era restritiva, diz respeito as roupas que se podia ou não, usar durante o luto, chamado então, dó:
“Quando a alguma pessoa falecer pai ou mãe, ou outro ascendente ou filha, ou outro descendente, sogro ou sogra, genro ou nora, ou cunhado, poderá trazer por dó capuz, tabardo ou loba cerrada por tempo de um mês somente, e não serão de mais comprimento que até os artelhos, e daí por diante poderá trazer capa aberta de dó  que não passa de meia perna [...] e os pelotes e roupetas  que trouxerem por dó não serão mais compridas que até cobrirem os joelhos, e não trarão neles, mangas largas”.
O tabardo era uma capa, capote e casacão com capuz e manga. Loba era um tipo de vestido com túnica aberta, sem mangas, que se sobrepunha pela frente e a roupeta, uma veste mais estreita, como a túnica dos jesuítas. Como se pode observar, a imobilidade das linhas, correspondia à imobilidade que se esperava de quem estivesse triste e chorando a partida dos seus. Tais leis suntuárias funcionavam? Sabemos que elas mais freavam, do que impediam o porte de determinadas vestimentas ou tecidos por quem não devia. Um exemplo? Nos finais do século XVII, durante o reinado de Luís XVII, chegou-se a cercear, de acordo com o nível social, a grossura dos galões ou a matéria dos botões. Restritos ao uso masculino, os botões só então passaram a ser usados pelas mulheres, antes obrigadas a manusear um sem número de laços e fitas para fechar suas vestimentas. Mas não há dúvidas de que com a emergência da burguesia e o declínio do feudalismo, têm início a corrida pelo desejo de consumo. Até então as qualidades vestimentares femininas eram baseadas na modéstia e na moderação, como pregava a Bíblia.
No século XVIII tudo se precipita. A gestão das rivalidades entre cortesãos escapa progressivamente aos soberanos e a moda que, desde o Renascimento, parecia ter tendências seculares, adquire sua acepção moderna de tendência passageira, de gosto coletivo e efêmero. É essa, pelo menos, a definição que lhe é dada, em 1690, num dicionário francês. Viajantes estrangeiros de passagem por Paris, ficavam bestificados com o número de boutiques e casas de comércio que ofereciam seus serviços para quem quisesse estar na moda. Cabeleireiros, peruqueiros, sapateiros, tintureiros, perfumistas, bordadeiras, costureiras, lavadeiras, joalheiros, enfim, os mais variados comerciantes eram responsáveis pela multiplicação de conceitos: beleza ou feiura, elegância ou ridículo. Tais prestadores de serviços, eram chamados de “petit-maîtres”, pequenos mestres, pois haviam até especialistas capazes de incrustar insetos microscópicos em joias ou pedras raras em madeiras de cheiro utilizadas na confecção de botões, presilhas  e pentes.- Texto de Mary del Priore. ("Corpo a Corpo com a Mulher", Ed. Senac, 2000).

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