Um dos aspectos mais interessantes da infância no passado era, sem dúvida, o relacionamento afetivo entre pais e filhos. Observado por vários viajantes, ele era considerado excessivo: “O carinho dos pais pelos filhos, enquanto pequenos chega a não ter limites, e é principalmente o pai quem se ocupa com eles, quando tem um minuto livre. Ama-os até a fraqueza e, até certa idade, atura as suas más criações. Não há nada que mais o moleste do que ver alguém corrigir seu filho. Quando marido e mulher saem de casa, seja para visitarem uma família, seja para irem a alguma festa, levam consigo todos os filhos, com suas respectivas amas, e é ainda o pai quem carrega com todo o trabalho, agarrando-se-lhe os pequenos ao pescoço, às mãos, ás abas do casaco”. Mas “estremecer sobre os filhos, contar estórias, graças, acalentá-los”, como dizia - se, no século XVIII, era considerado coisa de mulher: “Não é coisa pertinente a um homem ser ama nem berço de seus filhos” resmungava o médico Francisco de Melo Franco.
O amor materno, por seu turno, deixou marcas indeléveis nos testamentos de época. Não havia mãe que ao morrer não implorasse às irmãs, comadres e avós, que “olhassem” por seus filhinhos, dando-lhes “estado”, ensinando-lhes “a ler, escrever e contar” ou “a coser e lavar”. A expressão “amor materno” pontua vários destes documentos, revelando a que ponto as mães, no momento da despedida, não tinham os corações carregados de apreensão, temerosas do destino dos seus dependentes. A ama negra, como lembra Gilberto Freyre, deu também sua contribuição para enternecer as relações entre o mundo adulto e o infantil. Criou uma linguagem na qual se reduplicavam as sílabas tônicas dando às palavras pronunciadas um especial encanto: dodói, cacá, pipi, bumbum, tentem, dindinho, bimbinha. Com tantos mimos, o risco era da criança ficar mole e bamba, cansada e amarela. Padre Gama, já na virada do século XIX voltava a carga contra a criança criada entre resguardos de mães extremosas e amas negras. “O mulequinho quebra quanto encontra”, informa. “E tudo é gracinha; já tem 7 e 8 anos mas não pode ir de noite para cama sem dormir o primeiro sono em o regaço de sua yayá que o faz adormecer balanceando-o sobre a perna e cantando-lhe uma embirrante enfiada de chácaras e cantilenas monótonas do tempo do capitão Frigideira”. Os mimos em torno da criança pequena estendiam-se aos negrinhos escravos ou forros vistos por vários viajantes estrangeiros nos braços de suas senhoras ou engatinhando em suas camarinhas. Brincava-se com crianças pequenas como se brincava com animaizinhos de estimação. Mas isto não era privilégio do Brasil. Nas grandes famílias extensas da Europa ocidental, onde a presença de crianças de todas as idades e colaterais era permanente, criava-se uma multiplicidade de presenças que não deixavam jamais os pequeninos sós. E esses eram tratados pelos mais velhos como verdadeiros brinquedos, da mesma forma, aliás, como eram tratados os filhos de escravos entre nós: engatinhando nas camarinhas de suas senhoras, recebendo de comer na boca, ao pé da mesa, como os retratou Debret. Tais carinhos exagerados ou “os mimos maternos” eram, contudo, vistos por moralistas setecentistas, como o baiano Nuno Marques Pereira como causa para “deitar a perder os filhos”. A boa educação implicava em castigos físicos e nas tradicionais palmadas.
O castigo físico em crianças não era nenhuma novidade no quotidiano colonial. Introduzido, no século XVI, pelos padres jesuítas, para horror dos indígenas que desconheciam o ato de bater em crianças, a correção era vista como uma forma de amor. O “muito mimo” devia ser repudiado. Fazia mal aos filhos. “A muita fartura e abastança de riquezas e boa vida que tem com ele é causa de se perder” admoestava em sermão José de Anchieta. O amor de pai devia inspirar-se naquele divino no qual Deus ensinava que amar “é castigar e dar trabalhos nesta vida”. Vícios e pecados, mesmo cometidos por pequeninos, deviam ser combatidos com “açoites e castigos”. A partir da segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das chamadas Aulas Régias, a palmatória era o instrumento de correção por excelência: “nem a falta de correção os deixe esquecer do respeito que devem conservar a quem os ensina”, cita um documento de época. Mas, ressalvava, endereçando-se aos professores: “e tão somente usarem dos golpes das disciplinas ou palmatórias quando virem que a repreensível preguiça é a culpada dos seus erros e não a rudez das crianças a cúmplice de sua ignorância”.
As violências físicas, muitas vezes dirigidas às mães, atingiam os filhos e não foram poucas as famílias que se desfizeram deixando entregues ao Deus dará, mães e seus filhinhos: fome, abandono, instabilidade econômica e social deixaram marcas em muitas das crianças. Não são poucas as que encontramos, nos documentos de época, esmolando às portas de igrejas, junto com suas genitoras. Um processo crime datado de 1756, movido na vila de São Sebastião, São Paulo, por Catarina Gonçalves de Oliveira revela imagens de outras violências: a de pais contra filhos. Nos autos, Catarina revela ter defendido seu enteado, uma criança pequena, de chicotadas desferidas pelo pai, ansioso por corrigir o hábito do pequeno de comer terra. As “disciplinas”, os bolos e beliscões revezavam-se com as risadas e mimos. Mas também com divertimentos e festas.
Nas escolas jesuíticas o lazer ficava por conta do banho de rio e no “ver correr as argolinhas”. Tradição lusa antiquíssima, essas consistiam em uma forma de “justa” na qualquer se deixava pender de um poste ou árvore enfeitada, uma argolinha que devia ser tirada pelo cavaleiro em disparada. “Ensina-mo-lhes jogos que usam lá os meninos do Reino - conta, entusiasmado, o padre Rui Pereira em 1560 - Tomam-nos tão bem e folgam tanto com eles que parece que toda sua vida se criaram nisso”. Brincava-se, também, com miniaturas de arcos e flechas ou com instrumentos para a pesca. Outras brincadeiras: o jogo do beliscão, o de virar bundacanastra, o jogo do peia-queimada além de ritmos, cantos, mímicas feitos de trechos declamados e d e movimentação aparentemente livre mas repetidora de um desenho invisível e de uma lógica misteriosa e mecânica. Piões, papagaios de papel e animais, gente e mobiliário reduzidos, confeccionados em pano, madeira ou barro, eram os brinquedos preferidos. A “musicaria” atraía loucamente: crianças indígenas adoravam instrumentos europeus como a gaita ou o tamboril que acompanhavam, segundo os cronistas jesuítas, ao som de maracas e paus de chuva. A participação em festas com música atraíam crianças de todos os grupos sociais. Alegrando procissões, enfeitados com carapuças cobertas de pedrarias e flores, participavam a coreografias e cantos em homenagem a determinado santo da Igreja católica ou em homenagens aos governadores recém-chegados de Portugal.
Na famosa festa mineira, o Triunfo Eucarístico, realizada em 1734 em Vila Rica, “onze mulatinhos” vestidos como indígenas, enfeitados com saiotes de penas e cocares, levando nas pernas, fitas e guizos, cantaram ao som de tamboris, flautas e pífaros, bailando uma “dança dos carijós”. Festas do calendário tradicional como São João ou Reis, animavam as crianças que iam pular fogueira, subir em mastros e com a invasão dos fogos de artifício, no século XVIII, soltar rojões e estrelinhas. Coadjuvantes nos autos de Natal participavam, devidamente enfeitados como anjinhos ou pastores, e vinham vestidos de estopinha branca, chapéu de palha fabricado com palmas de ouricuri, enfeitado de fitas, tendo a copa coberta de algodão com enfeites de velbutina preta, cajado de fitas, cesta com flores no braço e pequeno pandeiro de folha de Flandres. Debret, de passagem pelo Rio de Janeiro, impressionou-se e reproduziu uma destas crianças, verdadeiro personagem das atuais escolas de samba, vestido com cocar de plumas, joias falsas e figurino sofisticado. - Texto de Mary del Priore
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segunda-feira, 12 de outubro de 2015
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