domingo, 13 de maio de 2012


Enio Mainardi

MÃE (Um conto de)



Ele dormia dentro das pálpebras. Que sono. Num esforço levantou 100 quilos só com

meio olhar. E se reconciliou com a preguiça, fechando de novo lentamente as pálpebras, não havia nada ao redor que pudesse interessá-lo, nem levemente.

Um sujeito, gerente de filial das Casas Pernambucanas da pequena cidade do interior, se afastou de um grupinho e tentou puxar conversa. Que é que ele falou ? Que?!... ‘Hoje está muito calor, né?” Concordou molemente, “está”. Sorte eu ter vindo de ray-ban escuro, pensou. Assim posso disfarçar, fingindo que estou acordado.

Mas o lojista ficou animado com aquele começo de conversa. “Quem não mora aqui estranha tanto abafamento, não é? O meu primo...” O primo dele que se foda, meu deus. Tinha uma festa rancheira acontecendo ali. No meio de uma fogueira sempre atiçada com mais carvão, rodava o cadáver de um animal, com um espeto que entrava pelo cu e saia pela boca. Ia girando, girando, diversas pessoas abanavam as brasas da churrasqueira. Mais ao redor, pessoas seguravam pratinhos e iam até o fogaréu para mendigar um pedaço disso, um pedaço daquilo.

Parecia que todo mundo ali entendia das partes do animal sacrificado. Ele ficou um pouco curioso, nomes como maminha eram ditos com autoridade. Me dá aí uma lasca de maminha, amigo! Maminha, de mama? Tinha alguém querendo comer as mamas daquele boi? Será que boi tem mama? Então era uma vaca, seria? De vez em quando batia um ventinho leve e as chamas iam junto com a fumaça, fazendo refluir aquele bando de aves de rapina, que recuavam como que assustados com tanto sufoco. Se abanavam, tentando afastar a fumaça, os olhos já vermelhos da irritação de tanto quentor. O gerente da Pernambucanas agora tinha desistido. Fingiu que foi buscar um chope e saiu, se juntando com gentes mais sociáveis. Melhor. Aquele lugar não tinha paredes, era uma espécie de construção redonda coberta com telhas de cimento-amianto, próximo à casa da fazenda. Alguns bancos rústicos, de madeira. Uma pia grande. E, no trono central, bem no meio daquele ambiente de sacrifício ritual estava a churrasqueira imensa. As mulheres, por ali sentadas, limpavam com lenço o suor que lhes desmanchava a maquilagem. Som disparado de um alto-falante pendurado numa das vigas de madeira, tocando música caipira. Country, como chamavam agora. Olhou o relógio. Os grupos dos marmanjos agora iam se aglutinando em confraternização, batiam uns nas costas dos outros, gostosamente, havia uma camaradagem que até dava inveja. Um dos que falavam mais alto, soberanamente, e que vestia um avental branco, era um gordo descomunal. Às vezes ele socava uma espécie de bomba dágua espetada num barril. Era chope. De quando em quando vinham uns moleques rolando outro barril, upa! todo mundo junto! E as canecas voltavam a desbordar espuma branca que fazia bigode no beiço das pessoas. Olhou o relogio de novo. Amanhã, a esta hora, já estaria de volta à São Paulo. Sua mulher, que havia ficado lá, havia-lhe recomendado paciência, que se comportasse no churrasco. “Você vai ver teus parentes, não custa nada um pouco de gentileza, né?” Da última vez que tinha vindo visitá-los, ela junto, isso tinha tornado tudo mais suportável . Mas agora ele estava perdido, sòzinho, não adiantava ficar contando os minutos. Qual será a hora em que o sol se põe? 5 horas, 6, talvez? Sentiu um ardor na perna, coçou, já sei: pernilongo. Ele não trouxera uma pomada. Girou a cabeça, cobrindo sistemàticamente todo espaço ao seu redor, como um radar de aeroporto. Interpretando esse movimendo erroneamente, cabeças acenaram cumprimentos, afagos de alô. Sorriu, devolvendo sorrisos. Então ele captou uma cabecinha de mulher, ela estava sentada num dos bancos do outro lado da churrasqueira, examinando-o curiosamente,

à distância. Até então ele não a havia notado. Encorajada, ela se levantou e veio para junto dele. “Oi, querido! Desta vez você demorou tempo demais para vir nos visitar, não é?” Ele aceitou a abertura e começaram a jogar xadrez.“Não que eu não quisésse, tia”, mentiu, desajeitado. A carinha dela era magrinha, magrinha. Jeito de menina envelhecida, fanada, que supria a falta de encanto com uma voz simpaticamente esganiçada. Acertaram-se sobre as bundas, mais confortàvelmente. Desde pequeno que ele cismava com o jeito dela, pois um dos seus olhos era desviado para cima. Dava sempre vontade de acompanhar aquele olho para saber no que ela estava interessada. Chamava-se Samira, o nome também era inusual, Tia Samira. Sua irmã, mãe dele, era apelidada de Nêga. As duas, Samira e a Nêga, tinham vindo para aquela pequena cidade quando elas eram novas, ainda. Não se sabe porque. Foram ficando, casaram-se, as duas. Samira com o médico da cidade, um bom homem. No corredor e no hall da casa deles amontoavam-se todos tipos de pessoas, aguardando para serem chamadas pelo doutor. Cheiro doce de caipira, botinas amarelas, novas. A história da Nêga era assim: depois de enviuvar do Celestino, seu marido original, havia-se casado com o farmacêutico do lugar. Na verdade, era prático de farmácia. Os dois homens e as duas mulheres se davam muito bem. A Nêga acabou por morrer na casa do médico, dr. Rubens, ou doutor, só, como costumava ser chamado. Ela sofreu um mal estar quando visitava o casal amigo. Estavam tomando café na cozinha, ela e a Tia Samira, café bem adocicado, acompanhando de bocados de bolo de milho. A Nega estava muito bem e, de repente, uma falta de ar, uma dor no braço esquerdo, ela deixou a xícara quente cair no chão e gemeu, desconsolada. Que estava acontecendo, meu deus?

Lá do consultório, o doutor veio correndo, assim que foi avisado do acontecido com a comadre. Diagnosticou direto o ataque cardíaco, obrigou-a a sentar-se no sofá da sala, Samira tirou os sapatos dela, desabotou sua blusa, ansiosa. A Nêga estava arfante, desacertada, encharcada em suor frio. Ela nunca mais se ergueu daquele sofá, morreu ali mesmo, dia seguinte. Ele, o filho – vamos tornar claro, estou falando de mim mesmo, nem sei porque estava disfarçando aqui – eu só soube da morte da mamãe um dia depois. Mas ainda deu tempo para pegar um avião e vir para o enterro, todo mundo compareceu, tios, tias, primos, amigos. Ela era muito querida. E agora, ali na ante-sala onde a morta estava deitada no caixão, envolta em tules e flores brancas, de repente, veio o passado e baqueei na lembrança difícil daquela tristeza toda, de tanto tempo atrás. A Nêga, minha mãe, tinha-se ido. Sobraram meus meio-irmãos, com quem nunca tive familiaridade, morávamos longe, uns dos outros. Aquele churrasco, desconfiava, fora preparado como , digamos, uma espécie de homenagem à mim, o irmão mais velho e tão estranho. A tia Samira, tinha agora chegado seu rosto mais perto do meu, os olhinhos espevitados e incertos encaravam os seus olhos, insistentemente, como examinando algo, naquele churrasco fervente.

Ela era uma boa mulher, a Samira. Tinhamos algo especial em nossa relação, um afeto. Que bom, pelo menos com a Samira dava para conversar. “Menino”, disse ela, apesar de eu já ter passado dos 50 faz tempo. “Menino, vem aqui”, falou como se a segredar algo. Eu me aconcheguei, por um instante esquecendo todo o resto, me senti como que uma criancinha. “Menino, eu tenho um recado para você.” Estranhei.

“É um recado da tua mãe, a Nêga”. Minha mãe, eu repeti automáticamente, dentro da cabeça. “Antes da Nêga morrer, naquelas horas que passei ao lado dela, sentada no sofá onde veio a falecer, sua mãe me fez um pedido. Ela queria que eu te contasse o quanto, quanto...(uma lágrima, real) ela te amou, mais do que a ninguém. Apesar de tudo, do destino ter separado vocês...ela sempre sentiu que você era a pessoa mais importante da vida dela.” Ihhsh, confissão braba, texto ruim. Eu não queria misturar as coisas, aquela visita, depois do entêrro, era algo social, o churrasco era social, o chope era social, eu estava ali de passagem, controle suas emoções”, me disse em segredo. Pensando justamente nesses desabares de emoção e sentimentalismo é que eu tinha evitado visitar o túmulo da mamãe, pela última vez, logo de manhã iria embora, só tinha vindo ao churrasco por consideração, minha mala no hotel até já estava pronta. A Tia Samira e a Nêga eram espíritas, coisa que até me divertia, quando falavam do assunto religião. Eu sempre fui agnóstico, principalmente depois do colégio de padres e me classificava como ateu, homem do mundo, sem superstições. Mas agora minha respiração ganhava um certo galope. Não era por causa do chope, pois sempre detestei bebida. E também era quase vegetariano. Será que o cheiro fumacento da carne queimada no churrasco estava me fazendo mal? “Menino, tua mãe está aqui, agora, conosco. Ela está olhando para você, você consegue ver?” Não, eu não conseguia, aquela situação estava desandando, pensei, chegavam-me lágrimas. Me levantei, num repelão e me afastei, primeiro só andando e depois apertando os passos, quase correndo dali, não queria que vissem o ataque de choro que vinha chegando. “Mamãe, mamãe...” Doia-me o gasnete, estrangulado pela vontade de me controlar. Cheguei até a uma árvore perto da cerca e me deixei abandonar. Limpei os olhos debaixo do ray-ban, virei o corpo apoiando na direção da Tia Samira e vi. Era ela, era ela, a Nêga. Um abraço veio rodando pelos ares e me alcançou, os soluços fizeram meu corpo balançar, ahhh, mamãe, eu também te amo, chega prá aqui, como sinto a tua falta! Respirei fundo, engasgando, uma vez, duas, três... Abraço apertado, de mãe. Amanhã vou embora. Tudo está bem, tudo bem. Mas se pelo menos a mamãe pudesse vir junto comigo!