sábado, 9 de abril de 2011

Walderez é uma sobrevivente do naufrágio que jogou o país na Segunda Guerra

Walderez aponta a amiga Beatriz, filha do comandante Tito Canto, em foto de sobreviventes. As duas brincaram juntas no navio
Marcelo Monteiro
DIÁRIO SP
Walderez Moura Cavalcante, de 73 anos, foi protagonista de um dos episódios mais impressionantes ocorridos no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Náufraga de uma das 37 embarcações brasileiras torpedeadas por submarinos alemães e italianos, a alagoana - à época, uma garotinha de 4 anos de idade - foi resgatada depois de permanecer durante horas boiando no mar, dentro de uma caixa de madeira de Leite Moça.
Em 17 de agosto de 1942, o submarino alemão U-507 afundou dois cargueiros nacionais na costa da Bahia. Às 10h40, uma segunda-feira, o Itagiba - navio da Companhia Nacional de Navegação Costeira - foi atingido por um torpedo, abaixo da escotilha do porão número 3, e acabou indo a pique em cerca de oito minutos.
Cerca de duas horas e meia depois, o mesmo submarino voltou a atacar, torpedeando desta vez o Arará, da companhia Lloyd Nacional, que havia parado para socorrer os náufragos do Itagiba. Atingido na altura da casa das máquinas, o navio desapareceria nas águas em apenas três minutos. Dezoito náufragos do Itagiba que haviam sido socorridos pelo Arará virariam náufragos pela segunda vez, em um intervalo de poucas horas. No total, 56 pessoas morreram nos dois atentados.
Uma sobrevivente
Filha do homem de convés Otávio de Barros Cavalcante, a pequena Walderez brincava com uma vassoura próximo à popa, quando o Itagiba tremeu violentamente com o impacto do torpedo. Levada para uma dos barcos salva-vidas, ela acabou se perdendo do pai que, enroscado em fios de telegrafia, foi puxado para o mar quando o mastro do navio atingiu a baleeira, partindo-a ao meio. Neste momento, alguém - de quem Walderez não se lembra - colocou-a dentro de um caixote de leite condensado vazio, que acabaria salvando a sua vida.
A menina foi a última náufraga a ser resgatada, já durante a tarde daquela segunda-feira, quando seu pai, que também conseguira se salvar, milagrosamente, já perdia as esperanças de reencontrá-la com vida. Para Otávio, a filha era "um presente de Deus" - ambos comemoravam aniversário no 22 de novembro. E, naquele inesquecível 17 de agosto de 1942, a dádiva viera embrulhada em uma reles caixa de madeira.
A menos de dois meses de completar 5 anos de idade - nasceu 1937, em Maceió -, Walderez foi levada para a cidade de Valença, no litoral baiano, onde ficou hospedada por alguns dias na casa do prefeito Admar Braga Guimarães. Enquanto isso, com uma fratura na bacia, seu pai permanecia internado no Hospital Português, em Salvador.
O duplo torpedeamento no litoral baiano não foi o primeiro. Tampouco o que causou mais vítimas entre embarcações do país desde o começo das hostilidades, em fevereiro daquele ano. Mas, provavelmente, tenha sido um dos episódios que mais causaram indignação entre os brasileiros, pela frieza e crueldade demonstradas pelos alemães, ao atacarem um navio que havia parado para socorrer náufragos.
Revoltado, o povo saiu às ruas, em massa, para exigir a tomada de medidas drásticas contra os agressores. Em 22 de agosto, cinco dias depois dos ataques ao Itagiba e Arará, o Brasil decretaria estado de beligerância aos países do Eixo - Alemanha, Itália e Japão - e, exatamente duas semanas após o atentado, anunciaria sua entrada na Segunda Guerra Mundial, ao lado dos Aliados.
Trauma e desconfiança
Durante muitos anos, Walderez evitou tocar no assunto. Primeiro, por não conseguir falar sobre o drama vivido na infância. Mais tarde, quando, enfim, se sentia um pouco mais à vontade para lembrar o episódio, não tinha coragem, pois temia ser tachada de louca. "Imagine alguém dizendo que se salvou em um naufrágio graças a um caixote vazio de leite condensado..."
Há cerca de dez anos, Carla, uma das filhas de Walderez, decidiu mandar uma carta para a Nestlé, fabricante do Leite Moça, questionando se a companhia mantinha alguma documentação que comprovasse o episódio, o que ajudaria a reduzir as desconfianças sobre a história de Walderez. "A empresa nos mandou umas fotos que a minha mãe, inclusive, só tinha visto quando era criança
A imagem da pequena Walderez Cavalcante, com toda a aura de dramaticidade que envolveu o seu salvamento, foi utilizada pelo governo de Getúlio Vargas como forma de chamar a atenção da população para a brutalidade dos ataques alemães, justificando, desta forma, a entrada do Brasil no conflito mundial. O seu retrato era a própria imagem do Brasil, vítima da covardia nazista.
No dia 21 de agosto, a foto da menina apareceu estampada nas capas dos principais jornais da Bahia. Além disso, nos meses seguintes, uma reportagem filmada era veiculada no Cinejornal, produzido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas, mostrando Walderez, após o salvamento, na companhia do pai, no Hospital Português.
O fato de ter se formado em Psicologia, em Maceió, ajudou a alagoana a superar parte do trauma. Hoje aposentada, depois de exercer a profissão por duas décadas, Walderez consegue tratar do assunto com alguma naturalidade.
Em visita à filha Carla, Walderez aproveitou uma recente passagem pela capital gaúcha para pesquisar sobre o acontecimento. Ao rever a foto do Itagiba na capa de um jornal da época, ela se emocionou, cobriu a imagem e lamentou: "Ainda lembro daquele apito (do navio). Horrível. Foi como um último grito antes da morte."
Lúcida e bem articulada, Walderez revela, nesta entrevista exclusiva, tudo o que lembra daquele fatídico 17 de agosto de 1942.






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