sexta-feira, 15 de abril de 2011

Ouvindo os mortos

Médicos legistas são uma espécie rara: aos vivos, preferem os que já não podem falar, mas ainda têm muito a dizer
por Clara Becker
Passava das quatro da madrugada de sábado, 9 de outubro, quando o celular da médica-legista Gabriela Pinto tocou na sala de convívio do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, no Centro do Rio. Era o técnico de necropsia, Alexandre Braga Pereira, de 37 anos, que interrompia o sono das plantonistas para avisar que, naquele momento, mais quatro cadáveres haviam chegado ao necrotério. No beliche ao lado de Gabriela, a segunda legista do plantão, Antonieta Campos Xavier, perguntou animada: “Tem algum baleado?”
Quem trabalha com a doutora Antonieta conhece a regra: os baleados são todos dela. Diz-se nos corredores do IML que é uma injustiça ela não constar no Guinness como recordista mundial em necropsias de baleados. Essa circunstância faz com que Antonieta trabalhe mais do que seus companheiros. Grande parte das ocorrências registradas ali é, no jargão dos legistas, de Perfuração por Armas de Fogo, ou PAFs. Dos 1 080 casos de homicídio que chegaram ao IML no primeiro semestre de 2010, 913 foram por armas de fogo, uma média de cinco baleados por dia.
Antonieta, 66 anos, é uma mulher pequena, de cabelos rebeldes e franqueza desconcertante. Para manter a forma, corre, faz musculação e bicicleta. No trabalho, costuma ser mais rápida que seus companheiros. Assim que se desembaraça de seus baleados, se apressa em ajudar os colegas. Já chegou a fazer 28 necropsias num só dia.
O IML é o desaguadouro das misérias de uma cidade violenta. Ali só chegam vítimas de mortes não naturais – assassinados, acidentados, suicidas. Em média, são autopsiados vinte corpos por dia. Às sextas-feiras, a estatística piora. “Sexta-feira é o Dia Internacional da Matança. Hoje está sendo atípico, pudemos até descansar um pouco”, disse Antonieta, referindo-se ao baixo movimento. Desde que o plantão começara, às oito da noite, até aquela hora, haviam chegado apenas oito corpos.
A estatística podia ou não merecer alguma comemoração. Às vezes, os corpos demoram a ser encontrados e os despojos das sextas sangrentas, principalmente as de sol, que estimulam o consumo de álcool, só aparecem no sábado e no domingo. Nos dias de chuva mata-se menos.
Antonieta saltou da cama e, tateando no escuro, apanhou seu uniforme dobrado sobre a cadeira. Enquanto se vestia – ela se recusa a dormir com a roupa de trabalho, ao contrário dos colegas –, definiu-se com crueza implacável: “Sou movida a defunto e Coca-Cola.” Como para justificar a brutalidade da frase, emendou: “O médico-legista não é um mortal comum. Nós somos abutres da humanidade. Não dá para ver o que a gente vê e permanecer normal.” Se já estivesse de pé, e não encolhida nos lençóis tentando espichar o sono um pouquinho mais, a colega Gabriela assentiria. Mais tarde, contaria que, na faculdade de medicina, vivia cheirando a formol. “Todo tempo livre que eu tinha, usava pra ir ao laboratório dissecar cadáveres.” Apaixonou-se pelas aulas de anatomia e descobriu sua vocação para legista. Em casa, inventava para os pais que ia acompanhar partos com um professor obstetra quando, na verdade, seguia para o IML na companhia de um professor de medicina legal.
Certa vez, no laboratório da faculdade, Gabriela recebeu o corpo de um homem cujo olho saltado só estava preso à órbita por um feixe de nervos e músculos. Na época, ela namorava um rapaz que pensava em ser oftalmologista. Querendo agradá-lo, deu-lhe de presente um vidrinho de formol com o olho dentro. O namorado achou o gesto de mau gosto e Gabriela ficou com o olho para si. Juntou-o a sua coleção de ossos. Ao casar, teve de se desfazer de tudo. O marido não gostou da ideia de conviver com esqueletos e olhos.
Gabriela tem 36 anos e trabalha há oito no IML. Ela é baixa, magra, com músculos bem torneados. Os cabelos lisos chegam quase à cintura. Naquela madrugada, usava um uniforme verde da Rede D’Or, onde também trabalha, brincos de pérola e duas correntes de ouro: uma com a estrela de Davi, e outra com um pingente onde se lê o nome do filho de 5 anos, Miguel. É ortopedista, como o pai, com quem divide um consultório particular. Não abriu mão, no entanto, de exercer a medicina legal. A decisão não agradou à família, principalmente ao pai, que considera o ambiente de trabalho degradante e não entende o que a filha vê “na porra do IML”. Gabriela tem uma explicação: ali encontrou um modo de dar vazão a seu sentimento moral. A medicina legal lhe dá a possibilidade de condenar culpados e absolver inocentes. Gabriela busca compreender o que os mortos dizem com seus corpos mutilados.
Os legistas do estado do Rio de Janeiro ganham pouco mais de 3 500 reais por mês para se revezar em plantões de 24 horas, sistema que Antonieta julga absurdo: “Ninguém deveria passar mais de seis horas num necrotério. Isso aqui é uma máquina de fazer doidos. Só não endoideço porque já nasci louca. Não é à toa que tantos legistas ficam encostados durante meses pela psiquiatria. Desafio qualquer um a passar duas horas me vendo trabalhar aqui dentro.”
Antonieta foi a primeira a chegar à sala de necropsia. Estava bem disposta, apesar das poucas horas de sono. Vestia uma calça azul, jaleco branco, touca, sapatos cor-de-rosa e carregava uma prancheta decorada com adesivos das princesas da Disney. Eram cinco da manhã, e os dois cadáveres que haviam sido autopsiados pelas médicas quatro horas antes continuavam nas mesas de aço. A cabeça de um deles estava reduzida a duas dimensões por causa da roda que lhe passara por cima. Irritada com a displicência da equipe, Antonieta gritou: “Sala! Cadáver na mesa!” Em poucos minutos, sonolentos e com olheiras fundas, apareceram os técnicos de necropsia – responsáveis por abrir e costurar os corpos –, o coletor de vísceras para os exames laboratoriais, o digitador e um faxineiro recém-contratado. A faxineira anterior não aguentara o trabalho e pedira demissão.
Segundo o Código Penal brasileiro, todas as vítimas de morte não natural devem ser submetidas a necropsia no órgão competente. Nesses casos, os médicos não legistas são impedidos de expedir um atestado de óbito, documento imprescindível para sepultamentos, cremação e seguros de vida. Também quando o médico não sabe especificar a causa da morte, ela é considerada juridicamente suspeita e o corpo precisa ser enviado ao IML para investigação.
Antonieta contou o caso do corpo de um embaixador de Porto Rico, encontrado junto a um poste da Lapa. A família chegou acompanhada de um médico que alegava que o morto sofria de problemas cardíacos e certamente enfartara. Queriam evitar que fosse autopsiado. Compreende-se a reação: na autópsia, os cadáveres são abertos, vasculhados, suturados. É uma dessacralização do corpo que agrava a dor dos parentes. Antonieta, porém, é inflexível: “Chegou aqui, vai para mesa.” Ao abrir o corpo do embaixador viu que as costelas estavam quebradas e o baço esmagado. Era um caso de homicídio.
Na sala onde os parentes aguardam a liberação dos corpos, sofre-se de muitas maneiras, de lágrimas contidas a paroxismos de desespero. Mães arrancam os cabelos, rasgam roupas, chamam por seus filhos. Gritos de dor ecoam pelos corredores. Entre os que fazem o reconhecimento, há os que só olham de relance para o corpo, os que beijam e os que embalam a pessoa morta. Antonieta sempre evita passar pelos familiares. “Eu só falo com defuntos”, diz.
Dos quatro mortos recém-chegados, dois tinham sido baleados. Foram postos nas mesas de aço para serem autopsiados por Antonieta. “Eu gosto do trabalho detetivesco, de seguir o trajeto da bala no corpo até achá-la”, explicou. Estava diante dos corpos de dois jovens mulatos. A equipe sempre se impressiona com a capacidade de Antonieta para estimar altura e idade. A médica bateu os olhos e afirmou: “Esse aqui tem uns 17 anos e 1,75 metro. O outro, 19 anos e 1,83 metro.” Com uma régua de 2 metros, o técnico de necropsia comprovou que a legista acertara mais uma vez. Um rapaz fora encontrado na Penha; o outro, em Guadalupe, dois bairros violentos do subúrbio do Rio de Janeiro. “Em vinte anos só vai ter velho no Brasil. Os moços morrem todos”, lamentou a médica.
Enquanto o técnico Alexandre Pereira amolava a faca usada nas incisões, Antonieta registrava numa ficha presa à sua prancheta a roupa dos jovens. Escrevia cantarolando a marchinha: “No tempo que Dondon jogava no Andaraí...” Os dois mortos vestiam bermuda e blusa de times internacionais de futebol, o inglês Chelsea e o italiano Inter de Milão. “Eles quase nunca chegam com tênis. Sempre levam”, observou. Depois de despir os corpos, os técnicos lavaram a lama e o sangue com um chuveirinho acoplado à mesa. Um dos mortos tinha a barba por fazer e um nome feminino tatuado no antebraço direito. Os olhos abertos, fixos no teto, lhe davam um aspecto de vivo, impressão imediatamente desfeita quando o viraram de costas. Um tiro na cervical havia explodido a sua caixa craniana e ele não tinha cérebro. Serena, a equipe apenas registrou o fato. “Ele está sem cérebro”, disse um dos técnicos.
Ao contrário de cirurgias, em que corpos são delicadamente manuseados, no IML eles são puxados, empurrados, atirados. Não há descuido, mas necessidade. O manuseio de cadáveres enrijecidos não é fácil. Despi-los exige habilidade e força. Uma adolescente de 16 anos com um piercing no umbigo chegou vestindo um short tão apertado que a equipe ficou especulando como teria conseguido calçar a peça. Depois de várias tentativas de removê-lo, o short teve que ser cortado.
O técnico de necropsia Alexandre Pereira é grande, musculoso, de ombros largos. Ainda assim, faz muita força para descruzar os braços dos mortos. Os técnicos são responsáveis pelo trabalho pesado. Por um salário bruto de 1 535 reais eles transportam, despem, cortam e costuram os cadáveres. São considerados os alfaiates do IML. Os corpos são fechados com barbante de sisal, uma fibra biodegradável. Os pontos, dados com uma agulha grossa e comprida, distam quase um palmo um do outro, o que deixa os mortos com aparência de espantalhos. Ter o segundo grau completo é a única exigência para se candidatar para a função. No concurso que Pereira fez, em 2002, foram 43 mil inscritos para 97 vagas.
Ele tem a destreza de um cirurgião. Fez uma incisão precisa, sem desvios, da garganta até o púbis de um dos baleados. Em seguida, descolou a pele do tórax e cortou as costelas para permitir acesso ao coração e aos pulmões. Usando uma concha para tirar o excesso de sangue, removeu o coração, intacto, e deixou-o apoiado ao lado da cabeça do cadáver enquanto vasculhava as vísceras à procura dos projéteis. Enfiou o estilete onde o rapaz fora atingido para acompanhar a trajetória da bala. Antonieta fotografava tudo e assinalava as feridas na silhueta de um corpo humano reproduzida na ficha que trazia à mão. O odor fétido “de sangue coalhado” – como descreveu o faxineiro – não parecia incomodar a equipe.As balas de calibre 22 e 32 são pequenas e difíceis de encontrar. Uma delas, encravada na coluna vertebral, teve que ser retirada a golpes de martelo. Na maca ao lado, um segundo técnico serrava o crânio do outro baleado. O barulho fazia a sala parecer uma serralheria. O jovem com o crânio exposto tinha sido atingido por oito balas. O número não impressionou Antonieta. Ela já fez necropsias em cadáveres desfigurados por 109 tiros. “O ser humano é a prova cabal da inexistência de Deus. Dizem que Deus é perfeito. O perfeito, por definição, não erra. O homem é um erro, então não poderia ter sido criado por Deus”, silogizou.
Diariamente, o que Antonieta enxerga naquelas macas é o suplício e a atrocidade. Cansou de juntar pedaços de corpos esquartejados, de ver cadáveres com pés e mãos amarrados para trás, fita crepe na boca, olhos arrancados, faces descoladas. Certa vez, recebeu o corpo esfaqueado de um presidiário. Na 157ª incisão, desistiu de contar. Se há algo que não suporta é o cheiro de carne queimada dos corpos carbonizados. “Teve um menino de 18 anos, filho de policial, que foi queimado vivo em pneus. Depois os traficantes ligaram para o pai e disseram: ‘Vem buscar seu carvãozinho.’”
“Eu não concordo com essas ONGs que protegem bandidos e dizem que tudo é falta de estrutura familiar e afeto, e que a culpa é da desigualdade social. Se fosse só por fome, o bandido não precisava arrancar o coração depois de roubar uma velhinha ou quebrar o pescoço de uma criança depois de estuprá-la”, disse.
Antonieta acostumou-se com a morte e não a teme. “Não é preciso se preocupar. Ela virá.” Só lamenta não estar viva para saber se as verdades científicas do futuro confirmarão as de hoje.
Feita a perícia nos corpos dos dois baleados, Antonieta pôs-se a transmitir o laudo para o digitador que, minutos antes, dormia com a cabeça apoiada no teclado do computador. Ela não sabe e nem quer aprender a digitar. O funcionário, que estava com dor de garganta, aproveitou para consultar-se com a médica que também cuida dos vivos. Antonieta prescreveu-lhe um anti-inflamatório e continuou ditando: “O cadáver apresenta rigidez muscular generalizada com livores violáceos nas regiões posteriores do corpo.”
O laudo consiste em uma descrição detalhada do estado do cadáver. Nele constam a causa da morte, o tipo de instrumento usado ou o meio que a produziu – veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, afogamento. Em caso de homicídios por arma de fogo, a direção dos projéteis e a distância dos tiros são cruciais para informar ao inquérito policial e dar sustentação a uma tese apresentada ao júri. Um exame cadavérico bem-feito pode esclarecer muitas questões. Várias feridas de um só lado revelam a posição da vítima ao ser golpeada. O tipo de lesão indica se o agredido teria capacidade de se deslocar após o golpe mortal. A direção da lesão pode indicar se o criminoso é canhoto. Conteúdos do estômago, bexiga, reto e presença de sêmen também são evidências importantes. Marcas de dedos denunciam se a vítima foi agarrada por mais de um agressor. Foi o caso, por exemplo, de um homossexual morto pelo namorado durante uma briga. Os advogados do réu insistiam na tese de legítima defesa. As marcas roxas encontradas no braço da vítima revelaram que uma terceira pessoa a segurara para que outra a esfaqueasse.
Juízes se baseiam nas provas descritas nos laudos para proferirem sentenças. É corriqueiro na vida de um médico-legista ser chamado para depor. Em 2002, Antonieta deu seu parecer no caso do candidato a deputado estadual pelo PDT Luiz Fernando Petra, que foi morto ao enfrentar cabos eleitorais que penduravam galhardetes de um candidato da oposição no poste em frente a sua casa. Atingiram-no com cinco tiros: três no peito, um na cabeça e um nas costas. Durante o julgamento, o réu, que alegava legítima defesa, fixou o seu olhar no dela. Antonieta não se intimidou e deu seu parecer ao juiz: “Vossa Excelência, a vítima estava deitada quando recebeu o tiro na cabeça. Além do mais, onde já se viu legítima defesa com cinco tiros?” O homem foi condenado a quinze anos de prisão pela 2ª Vara Criminal. “Eu gosto quando condenam. Fico danada da vida quando vejo bandido ir para casa.”
Não são raras as vezes que ela fica danada da vida. Lembrou-se de um dia chuvoso em que teve de depor na Ilha do Governador. Uma mulher fora achada na cozinha de casa com um tiro na cabeça. O marido era o principal suspeito e o advogado tentava convencer os jurados de que se tratava de suicídio. Alegava que o teste de pólvora na mão da morta tinha dado positivo. A legista explicou que os reagentes usados no IML não eram precisos. Detergente, batom e limão podem fazer com que o teste de pólvora dê positivo. “O tiro tinha sido dado por trás, eu achei a bala na testa. Suicidas atiram na têmpora, na boca ou no peito. Já pegou numa arma? Experimenta atirar por trás para ver se você consegue?”, disse. O marido foi inocentado. “Eu não sei como aquele advogado gordo safado conseguiu, mas prevaleceu a tese de suicídio”, afirmou, ainda indignada.
Antonieta trabalha como neurologista no hospital do Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, o Iaserj, desde 1978. Já poderia ter se aposentado, mas ficou para brigar com o governador Sérgio Cabral que, segundo ela, pretende fechar o hospital. Em 1993, estava atendendo no pronto-socorro quando um amigo neurocirurgião lhe disse que havia sido aberto um concurso para medicina legal. “Nem li o edital, fiz um cursinho preparatório e passei. Quase caí para trás quando descobri que tinha virado policial.”
O Instituto Médico Legal, que era vinculado ao Ministério da Justiça, foi transferido para a Polícia Civil em 1930. Ali, teve que dividir parte dos já minguados recursos com o Instituto de Identificação Félix Pacheco e o Instituto de Criminalística Carlos Éboli, que também dão suporte às investigações policiais. Além do necrotério, há o setor dos vivos, responsável pelos exames de corpo de delito. Frank Perlini, ex-diretor do IML, diz que o instituto é uma casa de sofrimento: “Nenhum dos nossos pacientes volta ou nos dá presente de Natal.”
Antonieta não teve dificuldades em se adaptar ao necrotério. “Sou filha de cangaceiros”, brincou. Nasceu em 1944, no município de Rio do Meio, no interior da Bahia. Aprendeu desde cedo a lidar com a morte – dos seus quinze irmãos, sete morreram ainda crianças. Ela se lembra dos “defuntinhos” das irmãs que não sobreviveram às condições em que viviam na roça. Antonieta, a única menina sobrevivente, foi criada com mais sete irmãos num Nordeste masculino. Ajudava a mãe a preparar o almoço para os homens que trabalhavam na lavoura. Depenava galinhas e descarnava porcos e caças que o pai trazia: tatu, teiú e veado.
Foi semialfabetizada pela mãe, que só cursou 3 meses e 19 dias de escola – os estudos foram interrompidos porque o avô achava que as meninas só queriam aprender a escrever para mandar cartas para os namorados. Foi só aos 16 anos que Antonieta se alfabetizou de verdade. Apesar disso, formou-se médica com pós-graduação em medicina tropical pela USP e especializou-se em neurologia no Iaserj.
Foi Maria Lourdes Borges Palmeira, filha de João Borges, dono da fazenda em que os pais de Antonieta trabalhavam, quem tirou a menina chucra da barra da saia da mãe e a trouxe para o Rio de Janeiro quando tinha 16 anos. “Meu pai ficou com vergonha de dizer não à dona Lourdes e eu vim.” Seu patrão, Sinval Palmeira, casado com Maria Lourdes, a incentivou a se matricular na escola. Antonieta trabalhava como copeira durante o dia e frequentava a escola à noite. Até os 27 anos, quando passou para a faculdade de medicina, revezava-se entre os estudos e jantares servidos à francesa. “Dona Lourdes lamenta até hoje ter perdido a melhor copeira que ela já viu. Eu era emprestada para servir o Balé Bolshoi. A cada jantar eu comprava um uniforme novo, adorava a meia soquete e a toquinha de renda. As mulheres eram todas muito elegantes”, contou.
Antonieta nunca se casou. Passava todo o tempo livre estudando na mesa da cozinha. “Meus patrões chegaram a me levar a um psiquiatra achando que eu tinha algum problema”, contou. A cicatriz que tem entre as sobrancelhas é a prova da sua obstinação. Numa das muitas noites que varou estudando para uma prova de química, cochilou, bateu com a cabeça na mesa e levou onze pontos. “Depois passei da época de amar. Casar e ter filhos, só quando se é jovem e irresponsável. Graças a Deus nunca me apaixonei. Só pela medicina legal”, disse. Ainda hoje, cinquenta anos depois, ela continua a morar com dona Lourdes, que completou 97 anos. As duas vivem num apartamento na Avenida Atlântica.
O primeiro registro histórico de necropsia é o do imperador romano Júlio Cesar, no ano 44 a.C. O exame constatou que dos 23 golpes recebidos apenas um foi mortal. Já o primeiro livro sobre medicina legal é o Hsi Yuan Lu, manual chinês publicado em 1248, que ensinava como aplicar conceitos médicos para a solução de casos criminais. Em 1532, Carlos V, rei de Espanha e imperador do Sacro Império Romano Germânico, promulgou a Constitutio Criminalis Carolina, que autorizou a necropsia forense. Em 1650, surgiu o primeiro curso especializado em medicina legal na Universidade de Leipzig.
O século XIX é considerado a época de ouro da medicina legal. Nesse período a ciência também prosperou no Brasil. A primeira necropsia médico-legal no país foi feita em 1835, por Hércules Otávio Muzzi, cirurgião da família imperial. Em 1856, foi criado, no Rio de Janeiro, o primeiro necrotério. Em seu livro, Medicina Legal: Texto e Atlas, Hygino de Carvalho Hercules lembra que Raimundo Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto e Oscar Freire – para a maioria dos brasileiros, mais conhecidos como nomes de ruas – foram médicos-legistas reconhecidos internacionalmente.
Até 1975, o IML funcionava bem. Com a fusão dos antigos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, o instituto passou a atender uma área geográfica muito maior e mais carente, sem contrapartida de aumento de recursos humanos e materiais. A baixa remuneração dos médicos resultante da crise na saúde fez com que muitos prestassem concurso para o instituto não por vocação, mas para complementar a renda familiar. Hoje, no Rio de Janeiro, não há cursos de pós-graduação em medicina legal para os que querem se dedicar à pesquisa. A profissão não tem mais o prestígio de antigamente.
Às 5h35, Gabriela entrou no necrotério bocejando. A claridade das luzes frias irritou seus olhos ainda sonolentos. Trazia um desjejum para os colegas de plantão: Coca-Cola Zero, uma caixa de uvas-passas, bolo de cenoura feito pelo marido e pipoca de micro-ondas light, cujo cheiro aliviou por alguns minutos o ar nauseabundo do local. Gabriela é capaz de sentir fome ao ver alimentos em estado inicial de digestão no estômago de autopsiados. Certa vez ela trabalhava no corpo de um homem que morrera afogado na piscina durante uma feijoada. “Cortamos o estômago dele e a couve ainda estava verdinha. Cheguei em casa com o maior desejo de comer couve. Contei o caso para a empregada e pedi que ela preparasse um pouco para mim. Acontece que ela tinha estômago sensível e passou mal só de ouvir a história. A coitada nunca mais conseguiu comer couve na vida”, contou. Um mês depois, quando lhe bateu um desejo de molho à campanha, não contou o motivo a ninguém. Pela sua experiência, arroz todo mundo come; feijão, nem sempre. “Quando eu morrer e vier para cá vai ser inédito: quase nunca como arroz”, disse a legista, que não teme a morte, mas tem fobia de barata.
No seu último plantão antes de tirar licença-maternidade, grávida de nove meses e dois dias antes de parir, Gabriela bateu seu recorde de necropsias: foram 22 em 24 horas. Um dos cadáveres era de uma mulher que morrera durante o parto. Assim que saiu do IML, ligou para o corretor e fez um seguro de vida. No dia em que voltou a trabalhar, recebeu o corpo de uma criança que havia sido eletrocutada após enfiar o dedo na tomada. Na mesma noite, tapou todas as tomadas de casa.
As mortes de crianças são mais difíceis de lidar. Gabriela contou que um dos secretários do IML se recusou a entregar à família o atestado de óbito de uma criança que morrera asfixiada com uma bola de gude na garganta. Não queria ver a reação dos pais. Ela mesma teve que dar a notícia. “A mãe disse que não tinha bola de gude em casa e não sabia como o filho tinha arranjado uma. Eles não quiseram ficar com a bolinha”, disse, sacando da bolsa a bola de gude que guarda sem saber o que fazer dela.
Os cadáveres sem identificação, como os que chegaram na madrugada de 9 de outubro, são referidos pelo tipo de morte: o esfaqueado, o baleado, o afogado. Enquanto Antonieta se ocupava dos baleados, Gabriela se encarregou de necropsiar o enforcado. Já os cadáveres identificados – os que vêm com o nome amarrado no dedão do pé – são tratados pelo primeiro nome, como se fossem velhos conhecidos. “Você viu o Cleyton?”, “Pode levar o Evair”. Os que começam a apodrecer recebem o apelido de podrinho, podre ou podrão, conforme o estado de decomposição. São autopsiados em uma sala localizada na parte externa do IML para não empestear ainda mais o ar e para evitar a contaminação pela fauna cadavérica – termo médico dado a larvas que procriam em todos os orifícios e tecidos moles do corpo.
Gabriela saiu da sala e foi para a área externa autopsiar um corpo em estado inicial de putrefação. O cadáver só fora encontrado porque os vizinhos começaram a se incomodar com o mau cheiro vindo da casa ao lado. “Essa galera encontrada em casa é pudim de cachaça. Quando abre, tem cirrose, desnutrição e pneumonia. É batata”, disse a legista. Observado de certa distância, parecia tratar-se de um defunto obeso. O saco escrotal impressionava por ser do tamanho de uma bola de futebol, consequência do inchaço causado pelos gases exalados no processo de decomposição. É necessário cuidado ao abrir um corpo assim – os gases explodem e o sangue espirra na cara. O diagnóstico de Gabriela foi confirmado – tratava-se, sim, de um alcoólatra.
Já o enforcado surpreendeu a todos. Além do claro estrangulamento – evidenciado por uma profunda marca deixada pela corda no pescoço – o estômago estava cheio de bolinhas pretas – era ingestão de chumbinho. Algumas vezes os corpos são envenenados e depois pendurados para forjar suicídio. Esses são casos de homicídio de fácil resolução, pois faltam as marcas das reações vitais no pescoço. No caso do cadáver autopsiado por Gabriela, ficou claro que era um suicídio por envenenamento e enforcamento. “As reações vitais, a cara roxa e o sangue azul em sinal de asfixia comprovam isso”, explicou.
Eram sete horas da manhã quando Antonieta declarou encerradas as necropsias. Debruçara-se sobre os corpos durante duas horas. Não demorou quinze minutos e outro cadáver chegou. Era mais um baleado. “Oba”, exclamou, comemorando com uma dançadinha. Entusiasmada, comandou: “Bota na mesa!” Sem perder tempo, iniciou o trabalho, desta vez cantarolando Olhos castanhos. À Gabriela coube fazer uma verificação de óbito, ou V.O., termo empregado para definir casos onde não há pistas externas da causa de morte. O legista tem que fazer uma investigação minuciosa, órgão por órgão. A vítima daquele dia dera entrada na Unidade de Pronto Atendimento do Complexo do Alemão com fortes dores de cabeça e morrera duas horas depois. O corpo parecia saudável. Suspeitava-se de rompimento de um aneurisma. Por se tratar de morte natural, o corpo não deveria ter sido encaminhado para lá.
Quando isso acontece, Gabriela fica indignada. Ela critica os médicos que mandam verificações de óbito desnecessárias para o IML: “Eles ficam com medo de assinar atestado de óbito e sofrerem processo depois. Por isso mandam os corpos indevidamente para cá. Uma vez eu conversei com a defunta, pedi desculpas para ela, mas mandei o corpo de volta. Nós somos responsáveis por mortes não naturais, e ponto”, disse.
Naquele sábado, Antonieta e Gabriela foram para casa depois de verem dezoito mortos: seis baleados, cinco atropelados, um enforcado, dois asfixiados, duas mortes por causa natural identificadas por verificação de óbito e outras duas sem possibilidade de determinar a causa devido ao estado avançado de decomposição.

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