domingo, 10 de abril de 2011

O detetive da memória


O paranaense Rui Sampaio foi o precursor da hipnose forense na América Latina. Método ajudou a elucidar cerca de 700 crimes no Paraná
Publicado em 10/04/2011
BRUNA MAESTRI WALTER
No final da década de 1970, as irmãs adolescentes Rute e Rita tomaram uma decisão corajosa: deixar o irmão mais velho, Rui Fernando Cruz Sampaio, então com 20 anos, hipnotizá-las. Estudante de Psicologia, Sam¬paio tinha acabado de ler um livro sobre hipnose e ficou impressionado. Como o método não era bem aceito na época – praticamente não existia literatura nem cursos sobre o assunto –, o jeito foi convidar as irmãs para poder aprender na prática. Autodidata, ele começou a atender familiares e amigos na casa da família, na Lapa, na Grande Curitiba. Mal sabiam as cobaias que estavam colaborando para uma iniciativa que, no futuro, se tornaria inédita na América Latina.
Por gostar de investigação e assuntos científicos, o jovem também ingressou na carreira de perito criminal no Instituto de Criminalística do Paraná, em Curitiba. Gostava da profissão, mas tinha algo que o intrigava: a dificuldade de testemunhas e, principalmente, de vítimas em descrever o criminoso. “A tendência da nossa mente é esquecer o que é desagradável”, conta. Desfazer esse trauma poderia ser uma das chaves para conseguir mais pistas e Sampaio começou a se questionar se a hipnose não poderia ajudá-lo.
Criada no século 19, a hipnose é um instrumento médico psicológico que busca desfazer a amnésia. Ao contrário do que muita gente pensa, é um estado intermediário entre estar acordado e em sono profundo. Durante o transe, a pessoa continua consciente e pode, sim, mentir. Ela é convidada a regressar à lembrança de fatos passados e, quanto mais profundo o estímulo, mais os detalhes vêm à tona.
Munido dessas informações, Sampaio procurou a chefia do Instituto de Criminalística na época e apresentou a proposta. Acrescentou o fato de ter concluído o curso de Psicologia e iniciado o de Medicina. Os superiores olharam com certa desconfiança, mas permitiram a realização de consultas experimentais em 1983.
Sampaio foi desenvolvendo a técnica na prática e montou uma espécie de código de ética na hipnose forense. Uma das regras é que somente testemunhas e vítimas com amnésia total ou parcial seriam submetidas ao método, desde que consentissem. Os suspeitos, réus e indiciados ficariam de fora porque, pela legislação, ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Também os casos mais graves seriam medicados antes das sessões.
Primeiro caso
Definidas as regras, chegava a hora de atender o primeiro caso. Atropelamento, uma vítima, uma testemunha que não se lembrava de detalhes e poucas provas. “Era um caso sem solução”, diz o perito. O frentista que tinha visto o acidente aceitou ser submetido à hipnose, 40 dias depois de o fato ter acontecido. Durante a sessão, ele lembrou que o atropelamento foi provocado por uma Kombi e que um caminhão de mudanças com o logotipo de uma empresa havia tentado impedir a fuga do veículo.
Os investigadores chegaram ao motorista do caminhão, que no fundo da gaveta tinha guardado o número da placa da Kombi, usado em uma aposta no jogo do bicho. A Kombi foi encontrada e a perícia mostrou que havia ali resquícios de sangue. Diante das evidências, o dono do veículo confessou o crime.
Nas várias sessões de hipnose surgiam detalhes que auxiliavam na produção de retratos falados, na descoberta de mais testemunhas e na busca por provas. A desconfiança inicial com o trabalho do perito foi sendo diluída a partir do momento que o método começou a dar resultados (leia mais nesta página). Em 1999, estava instalado o Laboratório de Hipnose Forense do Paraná, iniciativa pioneira na América Latina, segundo Sampaio.
700 sessões
Na sala com poltronas e vidro espelhado, ele calcula ter feito mais de 700 sessões e diz que em praticamente todas elas conseguiu alguma pista que ajudasse na investigação. A chave estava no uso do poder da fala, em tom baixo e monótono, que fazia a pessoa entrar em transe e rever a cena do crime – entonação que pode fazer com que até a repórter se perca na entrevista.
Só que a iniciativa considerada de sucesso chegou ao fim em 2008. Sampaio se aposentou e não havia ninguém qualificado para assumir a função, além de o Instituto de Criminalística começar a registrar necessidades consideradas mais urgentes. Enquanto isso, outros estados (como São Paulo) buscam implementar a iniciativa em moldes semelhantes ao do pioneiro Paraná, onde o Laboratório de Hipnose Forense parece ter regredido de vez.
Casos resolvidos
Veja alguns dos crimes mais emblemáticos solucionados com o auxílio da hipnose:
Sem identidade
Um jovem de 22 anos não sabia nada sobre sua identidade. Ele trabalhava em uma delegacia da região metropolitana de Curitiba. Fã de Michael Jackson, foi apelidado de Michael. Em 2002, diversos exames não encontraram nenhuma anomalia. Submetido à hipnose, falou durante uma das sessões o nome de duas cidades: Esplanada (BA) e Estância (SE). Policiais receberam a informação que um menino de oito anos tinha sido sequestrado por ciganos e andarilhos numa dessas cidades. As características do menino desaparecido batiam com as de Michael. Ele foi submetido a exames de DNA e chegou-se à conclusão de que os pais dele moravam em uma dessas cidades.
Vítima ou suspeita?
Durante uma sessão de hipnose, a vítima passou a ser a principal suspeita. Um bebê de 40 dias havia sido encontrado morto na região metropolitana de Curitiba. A mãe da criança aceitou se submeter à hipnose e durante a sessão o psicólogo, psiquiatra e perito criminal Rui Sampaio notou que o comportamento da mulher não estava condizente com o de uma vítima. Ela não mostrava comoção. Pela experiência como perito, Rui notou que havia algo estranho e comunicou às autoridades. A mulher passou a ser investigada e o delegado a interrogou novamente. Ela se contradisse na delegacia e a polícia chegou à conclusão de que a mãe havia assassinado a própria filha.
Novo rumo
Depois de um atropelamento que resultou na morte de duas pessoas, há 10 anos, em Ponta Grossa, a polícia começou a procurar por um veículo Ômega bordô. As testemunhas, dois adolescentes que tinham escapado do acidente, diziam que o atropelamento tinha sido provocado pelo motorista que dirigia um veículo com essas características. Os jovens aceitaram se submeter à hipnose e durante a sessão foram taxativos ao falar que se tratava de um Ômega azul. A polícia mudou o rumo da investigação, encontrou o veículo abandonado em um barracão e não demorou a localizar o atropelador.



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